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A interpretação conforme a constituição e as sentenças manipulativas

Resumos

Este artigo se situa no campo do direito constitucional, mais especificamente na parte relativa às técnicas utilizadas pelo supremo tribunal federal (stf) e pelos demais órgãos do poder judiciário em suas sentenças. O objetivo é demonstrar que o contraponto da interpretação conforme a constituição (sentença interpretativa de constitucionalidade) deve ser a sentença interpretativa de inconstitucionalidade em sentido estrito e não a sentença de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. Tendo por base doutrina e jurisprudência do STF e de tribunais constitucionais europeus, são analisados os fundamentos de dois acórdãos emitidos no âmbito do controle difuso, constatando-se que essas decisões não são de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, mas manipulativas aditivas, ainda que uma delas apenas parcialmente. Conclui-se que os limites entre a função judicial e a legislativa poderão ser melhor avaliados, se a escolha entre interpretações alternativas (interpretação conforme a constituição) deixar de ser confundida com redução, adição ou substituição do conteúdo normativo (sentenças manipulativas).

sentença; manipulativa; interpretação; constituição; redutiva


This article is situated in the field of constitutional law, more specifically on the part concerning techniques used by the stf and by other bodies of the judiciary in their decisions. The goal is to demonstrate that the counterpoint of the interpretation according to the constitution (constitutionality interpretative sentence) must be the unconstitutionality interpretative sentence in his strict sense and not the unconstitutional partial sentence without loss of text. Based on doctrine and jurisprudence of the stf and european constitutional courts shall review the basics of two judgments issued under the diffuse control, noting that these decisions are not partially unconstitutional without loss of text, but manipulative addictive, even if one of them only partially. It is concluded that the boundaries between the legislative and judicial function may be better assessed if the choice between alternative interpretations (interpretation according to the constitution) ceases to be confused with reduction, adding or replacing the normative content (manipulative sentences).

Sentence; manipulative; interpretation; constitution; reductive


ARTIGOS

A interpretação conforme a constituição e as sentenças manipulativas

The interpretation according to the constitution and the manipulative sentences

Leo BrustI, II, III, IV

IDoutorando em direito constitucional na Universidade de Salamanca (Espanha)

IIMestre em ciência política pela Universidade Técnica de Lisboa (Portugal)

IIIprofessor de direito constitucional licenciado da universidade luterana do brasil (ulbra)

IVAdvogado

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Dario Pederneiras, n. 276, ap. 502 Petrópolis - 90630-090 Porto Alegre - RS - Brasil brustleo@yahoo.es

RESUMO

Este artigo se situa no campo do direito constitucional, mais especificamente na parte relativa às técnicas utilizadas pelo supremo tribunal federal (stf) e pelos demais órgãos do poder judiciário em suas sentenças. O objetivo é demonstrar que o contraponto da interpretação conforme a constituição (sentença interpretativa de constitucionalidade) deve ser a sentença interpretativa de inconstitucionalidade em sentido estrito e não a sentença de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. Tendo por base doutrina e jurisprudência do STF e de tribunais constitucionais europeus, são analisados os fundamentos de dois acórdãos emitidos no âmbito do controle difuso, constatando-se que essas decisões não são de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, mas manipulativas aditivas, ainda que uma delas apenas parcialmente. Conclui-se que os limites entre a função judicial e a legislativa poderão ser melhor avaliados, se a escolha entre interpretações alternativas (interpretação conforme a constituição) deixar de ser confundida com redução, adição ou substituição do conteúdo normativo (sentenças manipulativas).

Palavras-chave: sentença; manipulativa; interpretação; constituição; redutiva

ABSTRACT

This article is situated in the field of constitutional law, more specifically on the part concerning techniques used by the stf and by other bodies of the judiciary in their decisions. The goal is to demonstrate that the counterpoint of the interpretation according to the constitution (constitutionality interpretative sentence) must be the unconstitutionality interpretative sentence in his strict sense and not the unconstitutional partial sentence without loss of text. Based on doctrine and jurisprudence of the stf and european constitutional courts shall review the basics of two judgments issued under the diffuse control, noting that these decisions are not partially unconstitutional without loss of text, but manipulative addictive, even if one of them only partially. It is concluded that the boundaries between the legislative and judicial function may be better assessed if the choice between alternative interpretations (interpretation according to the constitution) ceases to be confused with reduction, adding or replacing the normative content (manipulative sentences).

Keywords: Sentence; manipulative; interpretation; constitution; reductive

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Há muito que o uso das chamadas sentenças interpretativas (decisões que incidem apenas nas normas contidas num preceito legal, preservando o seu texto) deixou de ser uma prática limitada ao controle concentrado de constitucionalidade e, por conseguinte, ao Supremo Tribunal Federal. No âmbito do controle difuso de constitucionalidade os juízes e os tribunais também sentiram a necessidade de utilizá-las, para evitar que a declaração pura e simples de inconstitucionalidade acabasse por trazer mais danos que benefícios às partes e ao próprio ordenamento jurídico.

Como se sabe, essas sentenças se originam na aplicação da interpretação conforme a Constituição (Verfassunsgskonforme Auslegung) e têm sido normalmente utilizadas com a finalidade de salvar o texto da lei que, de outro modo, deveria ser declarado inconstitucional. Inicialmente - de forma mais consentânea com a sua finalidade originária - o STF a utilizava para declarar a improcedência da demanda de inconstitucionalidade e, em consequência, a constitucionalidade do preceito legal em questão (sentença interpretativa de constitucionalidade).1 1 Como o sistema brasileiro aceita a declaração de constitucionalidade, optou-se por utilizar as expressões sentença de constitucionalidade e de inconstitucionalidade ao invés de sentença de improcedência e de procedência. Evitam-se assim possíveis confusões no controle difuso, tendo em vista que uma demanda pode ser procedente no mérito e improcedente relativamente à questão de constitucionalidade tratada incidentalmente no processo (e vice-versa). Porém, a partir de certo momento passou a utilizá-la para declarar a procedência da demanda e considerou que a decisão resultante desse procedimento era uma sentença de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, fazendo eco à doutrina defendida por alguns autores alemães.

Por exemplo, na ADI 134 o STF "julgou procedente, em parte, a ação para dar interpretação conforme a Constituição à expressão 'sobre fatos relacionados com cada um deles', de modo a excluir os atos jurisdicionais". Essa decisão é de fato uma inconstitucionalidade parcial sem redução de texto ou sentença manipulativa redutiva, mas não porque seja a vertente negativa da interpretação conforme. Seguindo uma técnica mais apurada - corroborada majoritariamente pela doutrina italiana e portuguesa, e pelos Tribunais Constitucionais desses países, se verificará que o verdadeiro contraponto da sentença interpretativa de constitucionalidade somente pode ser a sentença interpretativa de inconstitucionalidade (interpretação conforme a Constituição stricto sensu) (REVORIO, 2001: 128). A equiparação procedida pelo STF iguala de forma inquestionável sentenças intrinsecamente diferentes, mas tem sido seguida pelos Tribunais e juízes no controle difuso, e aceita algo passivamente pela generalidade da doutrina brasileira. No entanto, o mundo das sentenças interpretativas é muito mais rico que essa simplificação.

Na interpretação conforme a Constituição "propriamente dita" o julgador escolhe entre interpretações alternativas existentes no conteúdo normativo do preceito legal e preserva o seu texto. Por isso, e só por isso, ela pode produzir tanto sentenças de constitucionalidade (o preceito é constitucional interpretado ou se for interpretado num determinado sentido), como de inconstitucionalidade (é inconstitucional interpretado ou se for interpretado...). Porém, tendo como ponto de partida a interpretação conforme, mas tomando-a num sentido mais amplo (lato sensu), o julgador tem condições de ir muito mais além e produzir sentenças que afetam o próprio conteúdo normativo complexo do preceito, reduzindo-o, aumentando-o e, até mesmo, substituindo-o.

Essa possibilidade levou os italianos a chamá-las de manipulativas (VEGA, 2003: 219-223). Os portugueses excluem dessa classificação as decisões redutivas e chamam as outras duas de modificativas ou, genericamente, de aditivas (CANOTILHO, 2002: 1007-1010, MIRANDA, 2002: 503). Aqui, contudo, optou-se pela posição italiana e pela denominação manipulativas, recusando qualquer conotação pejorativa que esse termo possa conter. Como as três sentenças manipulativas não surgem a partir de uma simples operação de escolha entre interpretações alternativas extraídas do texto, apenas podem ser de inconstitucionalidade. É nesse âmbito que se encontra a sentença de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, que reduz o conteúdo normativo complexo do preceito legal, também é conhecida por redutiva ou por inconstitucionalidade parcial qualitativa (é inconstitucional na parte em que... ou enquanto prevê ou inclui algo contrário a...), em contraposição à inconstitucionalidade parcial quantitativa, que reduz o próprio texto do preceito.

O tribunal constitucional italiano e a generalidade de seus autores designam essas duas sentenças redutivas genericamente de decisões de inconstitucionalidade parcial. Ademais, não confundem "redução de conteúdo normativo" com "escolha entre interpretações alternativas", pois esta merece classificação independente: sentença interpretativa de procedência (sentença interpretativa de inconstitucionalidade em sentido estrito). Além de redutiva, a sentença manipulativa pode ser aditiva, se agrega conteúdo normativo ao preceito (é inconstitucional enquanto não estabelece..., ou não prevê..., ou omite..., ou não inclui..., ou exclui..., algo que deveria incluir...), ou substitutiva, se substitui parte do conteúdo normativo do preceito por outro (é inconstitucional enquanto prevê..., ou sinala algo, em lugar de outra coisa que deveria prever...).2 2 Para uma classificação mais elaborada, ver: BRUST, L. Uma tipologia das sentenças constitucionais. Revista da AJURIS, Porto Alegre, n. 102, p. 223-250, jun. 2006. A prolífica tipologia italiana pode ser apreciada no excelente DE LA VEGA, Augusto Martín. La sentencia constitucional en Italia (Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003).

Levando em consideração essas premissas - particularmente a necessidade de não confundir a interpretação conforme a Constituição em sentido estrito (escolha entre interpretações alternativas) com as sentenças manipulativas (modificação do conteúdo normativo) -, serão analisados os fundamentos de dois "acórdãos interpretativos" da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que, por suas características, podem colaborar para trazer um pouco de luz a essa complexa matéria.3 3 Como ambos os acórdãos adotaram como razão decisória, na íntegra, pareceres do Procurador de Justiça Lenio Luiz Streck, é justo que se faça uma pequena advertência prévia. Não se pretende por em questão a ideia da pré-compreensão ( Vorverständnis) da legislação a partir da Constituição, tão bem explicada e difundida por esse autor em suas obras, particularmente Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova critica do direito (2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003). Ao contrário, comungamos a ideia de que a disseminação dessa prática entre os operadores do direito é indispensável para a constitucionalização do sistema jurídico-legal e, portanto, para a consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil. Tampouco se pretende entrar no mérito das decisões, mas tão-somente analisar criticamente a técnica empregada para chegar a elas.

Ambos os acórdãos buscam solucionar as respectivas demandas através de uma "filtragem hermenêutico-constitucional", fazendo uso da interpretação conforme a Constituição e da inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. Eles foram selecionados porque a base de sua argumentação repousa na ideia de que a nulidade parcial sem redução de texto implica redução de sentido e a interpretação conforme, adição de sentido, o que equivale dizer que ambos os institutos modificam o conteúdo normativo do preceito e, por conseguinte, originam sentenças manipulativas. Uma posição que tem algo em comum com a mantida pelo STF, pois quando este afirma que a interpretação conforme a Constituição, tomada em seu aspecto negativo, nada mais é que uma inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, também dá origem a uma sentença manipulativa, no caso, redutiva. Como se nota, enquanto o STF - fiel ao seu discurso de que atua exclusivamente como legislador negativo - reduz a interpretação conforme "desconforme" a uma técnica de redução de sentido, a fundamentação dos dois acórdãos regionais limita o próprio instituto da interpretação conforme a uma técnica de adição de sentido. Em qualquer caso, o resultado será invariavelmente uma sentença manipulativa - um tipo de decisão que sofre críticas na Europa, por supostamente invadir o âmbito de atuação do legislador.

Essas características conferem aos dois acórdãos uma transcendência toda especial, pois sua análise permite discutir e, de forma ampliada, identificar as diversas sentenças que a interpretação conforme a Constituição (stricto e lato sensu) é capaz de originar, trazendo alternativas à dualidade que nessa área ainda impera no Brasil. Nesse sentido, como aqui se defende que a interpretação conforme a Constituição dá origem a sentenças interpretativas de constitucionalidade e de inconstitucionalidade em sentido estrito e que estas não devem ser confundidas com sentenças manipulativas (redutivas, aditivas e substitutivas), a escolha desses dois acórdãos - que contêm duas decisões que são aparentemente de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto (manipulativas redutivas), mas se revelam manipulativas aditivas -, não é mera casualidade.

Finalmente, é necessário aclarar que o objetivo deste artigo não é criticar o uso das decisões interpretativas, mas contribuir para aumentar a transparência no seu uso. Sua complexidade não deve ser pretexto para simplificações, mas motivo para tratá-las com mais rigor, tanto no controle de constitucionalidade difuso, quanto no concentrado.

1 ANÁLISE CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO 70015006935-2006 4 4 Acórdão n. 70015006935-2006, de 28.06.2006, 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; Desembargadores Amilton Bueno de Carvalho (Relator), Aramis Nassif e Genaceia da Silva Alberton. Disponível em: < http://www.leniostreck.com.br >.

O preceito impugnado por inconstitucionalidade é o art. 299 do Código Penal (falsidade ideológica), que criminaliza textualmente as ações de "omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante". Nos fundamentos do parecer do Ministério Público adotado na íntegra como razão decisória do Acórdão5 5 Parecer do Procurador de Justiça Lenio Luiz Streck. - a partir de agora designado apenas por Acórdão ou fundamentos/razões do Acórdão - se sustenta que a aplicação desse preceito só pode ser considerada constitucional, se ocorre dano concreto, uma vez que a "criminalização de uma conduta não se legitima tão só pela conduta". E que "só há lesão que justifique a incidência do Direito Penal, como ultima ratio, quando existente a noção de imediatidade entre a falsificação e a lesão que se busca. Se lesão não houver, pode existir relevância jurídica, mas não criminal". Com esse preceito o Estado estaria "estabelecendo responsabilidade objetiva no Direito Penal, punindo condutas in abstracto" e violando, por conseguinte, os princípios constitucionais de proporcionalidade, razoabilidade e secularização (o Estado não pode punir meras condutas e comportamentos), conquistas do Estado Democrático de Direito. Não obstante, a declaração de inconstitucionalidade (não recepção) do art. 299 em sua totalidade é descartada, "uma vez que somente em parte fere a Constituição". Após lembrar os ensinamentos de Bittencourt (1968: 126), que defendia que quando "uma parte da lei é inconstitucional, esse fato não autoriza os tribunais a declarar também ineficaz a parte restante", o Acórdão se decanta por uma sentença que declara a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto.

A diferença entre interpretação conforme a Constituição e inconstitucionalidade parcial sem redução de texto é explicada nas razões do Acórdão, da seguinte maneira:

Assim, há que se buscar no direito alienígena e na jurisprudência de nosso Supremo Tribunal Federal os caminhos para a solução da controvérsia.

Do direito alemão aprendemos que, por vezes, podemos salvar um texto jurídico, não o declarando inconstitucional, a partir de uma adição de sentido. É o caso da verfassunsgskonforme Auslegung (interpretação conforme a Constituição). Em outros, retira-se uma das incidências da norma, isto é, na hipótese de se querer expungir da norma um dos sentidos que são contrários a Constituição. Neste caso, estar-se-á em face de uma Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung (nulidade parcial sem redução de texto). Em ambos os casos, não há mutilação formal do texto. Altera-se, apenas, o seu sentido. No caso da interpretação conforme estar-se-á em face de uma sentença de rejeição de inconstitucionalidade parcial qualitativa; no caso da nulidade parcial, tratar-se-á de uma decisão de acolhimento de inconstitucionalidade parcial qualitativa (ACÓRDÃO:7, STRECK, 2007: 23).

A menos que se esteja referindo a uma sentença manipulativa aditiva, não é totalmente correto afirmar que da aplicação da interpretação conforme a Constituição resulte pura e simplesmente uma adição de sentido. A presunção de constitucionalidade das leis - fundamental no controle de constitucionalidade, em nome da segurança jurídica e da supremacia do legislador na concretização e na realização da Constituição - está na base da interpretação conforme (ZIPPELIUS, 1976: 108, MÜLLER, 1989: 87), que pode ocorrer "sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo algumas delas incompatíveis com a própria Constituição" (MENDES, 2007: 287; SCHLAICH: 1985: 184).

Nesse sentido, na Representação de Inconstitucionalidade 1417 o ex-ministro Moreira Alves afirmou que da chamada presunção de constitucionalidade "se extrai que, entre dois entendimentos possíveis do preceito impugnado, deve prevalecer o que seja conforme a Constituição".6 6 Representação de Inconstitucionalidade n. 1.417 (RTJ 126/53). Ou seja, a interpretação conforme possibilita recolher do texto legal um sentido constitucional, conservando a integridade da lei, mas não contém "uma delegação ao Tribunal para que proceda à melhoria ou ao aperfeiçoamento da lei" (MENDES, 2007: 290). Está limitada pela expressão literal (Wortlaut) do texto normativo, porque "sua plurissignificatividade constitui a base que permite separar interpretações compatíveis com a Constituição daquelas que se mostram com ela incompatíveis" (GUSY apud MENDES, 2007: 290) e igualmente pelas "decisões fundamentais do legislador", isto é, suas valorações e objetivos. Por isso, "não se deve conferir a uma lei com sentido inequívoco significação contrária, assim como não se devem falsear os objetivos pretendidos pelo legislador" (MENDES, 2007: 290; MEDEIROS, 1999: 310).

A falta de coincidência com os parâmetros imaginados pelo legislador é vista como uma implicação natural do controle da constitucionalidade por Silva (2005: 24-25), que, não obstante, é bastante crítico com a interpretação conforme. Esse autor entende que ela - ao contrário de outros critérios interpretativos - não funciona sequer como "mera ideia reguladora, que indica uma direção a ser seguida", pois "aponta a uma direção completamente equivocada, que se baseia no dever de tentar salvar toda e qualquer lei que, ainda que minimamente, possua alguma centelha de constitucionalidade".

Nesse sentido, Aja e Beilfuss (1998: 277) advertem que "na prática se acode a elas quando a interpretação que está realizando o Tribunal Constitucional força demasiado a literalidade do preceito". Eles entendem que "tais sentenças estabelecem uma interpretação concreta e diferente à literalidade do preceito legal e, portanto, uma nova norma, mais ampla ou mais restritiva que a criada pelo legislador"; e criticam também a prática - um tanto frequente - de a interpretação não figurar no dispositivo da sentença e ser remetida a seus fundamentos jurídicos. Por essa razão, a par de "seus inconvenientes dogmáticos, tampouco podem ser ignorados os inconvenientes práticos e de segurança jurídica dessa técnica jurisprudencial".7 7 Uma boa seleção de artigos sobre os limites entre jurisdição constitucional e atividade legislativa pode ser encontrada em: AJA, Eliseo (ed.). Las tensiones entre el Tribunal Constitucional y el Legislador en la Europa actual (Barcelona: Ariel, 1998).

De todos os modos, uma coisa é certa: com a interpretação conforme a Constituição tomada em seu sentido estrito ou originário, o Tribunal não adiciona sentido ao texto legal. Limita-se a escolher a as opções constitucionais entre as interpretações alternativas emergentes do texto legal, dando origem à sentença interpretativa de improcedência (no Brasil, de constitucionalidade). Quando o Tribunal, com base na Constituição, adiciona sentido ao texto legal (ou o reduz ou substitui) está em realidade ditando uma sentença manipulativa. Essa sentença também parte da interpretação conforme (lato sensu), mas vai mais além, porque modifica o próprio conteúdo normativo complexo do preceito. E isso pode se refletir, eventualmente, numa indevida invasão da competência de outro órgão de soberania, mais especificamente, do Poder Legislativo. Não é por outro motivo que Canotilho (2002: 1293) alerta que "a alteração da lei através da interpretação pode levar a uma usurpação de funções, transformando os juízes em legisladores activos. Se a interpretação conforme a Constituição quiser continuar a ser interpretação deve respeitar o texto da norma interpretanda e os fins prosseguidos através do acto normativo sujeito a controlo".

No mesmo sentido, Llorente (1997: 491) assevera que a sentença manipulativa "pode ser aplaudida por quem vê nela a única via razoavelmente rápida para acomodar aos valores constitucionais ordenamentos inspirados em princípios bem distintos, mas violenta ao máximo o sistema de divisão de poderes, que é o fundamento mesmo de toda a arquitetura constitucional".

Retornando à interpretação conforme stricto sensu, é necessário que se diga que a opção por uma alternativa constitucional não significa que o preceito o seja unicamente sob a interpretação escolhida. O preceito necessitará ser interpretado em suas outras aplicações e, ademais, todos os tribunais ordinários têm total liberdade para desenvolver outras interpretações conformes a Constituição (BRYDE, 1982: 410, SACHS, 1979: 344). Não obstante, ainda que a sentença interpretativa de constitucionalidade esteja mais em consonância com o que se entende por interpretação conforme, ela pode igualmente ser utilizada para livrar o preceito das alternativas interpretativas consideradas inconstitucionais, originando a sentença interpretativa de inconstitucionalidade (em sentido estrito).

Quando isso ocorre, autores como Vogel (1976: 508), Mutius (1967: 403), Moench (1977: 19) ou Skouris (1973: 108) sustentam que a interpretação conforme se equipara à inconstitucionalidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung). A maior parte dos autores, contudo, não está de acordo com essa equiparação. Medeiros (1999: 317-318) e Pizzorusso (1963: 387-392), por exemplo, defendem que enquanto na inconstitucionalidade parcial sem redução de texto (para os italianos, sentença de inconstitucionalidade parcial; para os portugueses, redutiva ou nulidade parcial qualitativa) as distintas normas derivam de maneira conjunta ou complexa do texto, operando contemporaneamente, pois regulam fattispecie diversas ou determinam efeitos independentes, na interpretação conforme operam alternativamente, pois as normas contrastantes não podem ser aplicadas de forma simultânea. É por esse motivo que a redação da sentença de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto normalmente afirma que o preceito é inconstitucional na parte em que..., enquanto na interpretação conforme (sentença interpretativa de inconstitucionalidade) a redação mais usual afirma que o preceito é inconstitucional se se interpreta... ou enquanto se interpreta... em determinado sentido.8 8 Dois exemplos de interpretação conforme ditadas pelo Tribunal Constitucional português: (a) Acórdão n. 385/1998 - declarou a inconstitucionalidade do art. 69, 2º, do Decreto-Lei n. 519-F2/79 interpretado como sendo uma determinação para que das decisões dos conservadores e notários se recorra ao tribunal de comarca; (b) Acórdão n. 183/2008 - se pronunciou pela inconstitucionalidade de artigos do Código Penal interpretados no sentido de que a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.

Em ambas, portanto, o texto se mantém íntegro, ainda que a redução qualitativa seja sempre de inconstitucionalidade e a interpretação conforme stricto sensu possa originar, tanto decisões de constitucionalidade, quanto de inconstitucionalidade. O Acórdão 12/1984 do Tribunal Constitucional português mostra bem a diferença entre essas sentenças: o Tribunal entendeu que o art. 4º, n. 1-c do DL 701-B/76, que declarava inelegíveis para os órgãos das autarquias locais "os funcionários dos órgãos representativos das freguesias ou dos municípios", somente poderia ser considerado constitucional se não abarcasse os funcionários sem possibilidades de influenciar as votações pela baixa projeção social dos cargos que exerciam. Por isso, declarou a norma inconstitucional na parte em que se aplicava aos eletricistas, cantoneiros, etc. Referindo-se a esta decisão, Canas (1994: 92) ensina que nela não há uma interpretação conforme a Constituição, pois "a interpretação conforme a Constituição não pode ir para além do sentido possível da norma. Acontece que no caso sub judice a norma pretendia aplicar-se a todos os funcionários e não só a alguns. Houve sim uma decisão redutiva qualitativa".

Nesse sentido, quando o Acórdão da 5ª Câmara Criminal afirma que na inconstitucionalidade parcial sem redução de texto "retira-se uma das incidências da norma, isto é, na hipótese de se querer expungir da norma um dos sentidos que são contrários a Constituição" [sic], está dando a entender que se alinha à corrente antes referida, que equipara essa técnica à interpretação conforme. O Acórdão acentua também que "em ambos os casos, não há mutilação formal do texto" e conclui que "altera-se, apenas, o seu sentido". E aqui há um problema. A alteração de sentido é verdade para a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, onde há uma redução do conteúdo normativo do preceito, mas não o é para a interpretação conforme, onde tão-somente se faz uma eleição entre sentidos alternativos já presentes no conteúdo normativo do preceito (obviamente, interpretado em conjunto com a Constituição). A alteração de sentido também é verdade para a sentença manipulativa aditiva, na qual há uma adição de sentido, e para a substitutiva, na qual se substitui parte do conteúdo normativo do preceito por outro. Duas decisões nas quais se percebe mais nitidamente a atividade criadora do juiz.

Pela mesma senda segue a conclusão de que "no caso da interpretação conforme estar-se-á em face de uma sentença de rejeição de inconstitucionalidade parcial qualitativa; no caso da nulidade parcial, tratar-se-á de uma decisão de acolhimento de inconstitucionalidade parcial qualitativa". Aqui o Acórdão reduz a interpretação conforme a um mero contraponto da nulidade parcial qualitativa, como se ela fosse apenas sua alternativa interpretativa constitucional. Contudo, já se viu, são duas sentenças originadas em institutos com características inconfundíveis. Ademais, repita-se, com a interpretação conforme é possível chegar tanto a decisões de constitucionalidade, como de inconstitucionalidade e com a nulidade parcial sem redução de texto tão-somente - com perdão da redundância - a decisões de inconstitucionalidade. Daí que não seja possível falar de "sentença de rejeição de inconstitucionalidade parcial qualitativa". Ao menos não nesses termos. Por outro lado, para o Tribunal poder rejeitar ou estimar uma inconstitucionalidade parcial qualitativa, é necessário, em princípio, que exista pedido específico com esse fim na demanda, o que não é o procedimento usual, ainda que perfeitamente possível. Apesar de ser uma obviedade, sempre é bom recordar que essas técnicas de decisão quase sempre são utilizadas pelos tribunais com o objetivo de salvar o texto legal. Os demandantes normalmente se limitam a pedir ao Tribunal, para que este declare a inconstitucionalidade de determinado preceito legal e não a inconstitucionalidade de determinada interpretação (também a constitucionalidade, no caso do Brasil).

O Acórdão chega à conclusão que o texto do art. 299 do Código Penal (CP) pode ser salvo por uma declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto.

Assim, aplicando a nulidade parcial sem redução de texto, tem-se que determinado dispositivo é inconstitucional se aplicado à hipótese "x".

No caso sob análise: o art. 299 do Código Penal será inconstitucional se aplicado sem qualquer comprovação da intenção do agente de colocar em risco concreto e imediato qualquer bem jurídico relevante penalmente, sob pena de estarmos incorrendo em responsabilidade penal objetiva. Dito de outro modo, retira-se uma das incidências da norma, afasta-se o sentido que se revela contrário à Constituição. O texto permanece em sua literalidade; a norma, contudo, fruto da interpretação, modifica-se. Preserva-se, assim, a compatibilidade do texto com a ordem constitucional" (ACÓRDÃO: 8).

Como antes visto, para haver uma nulidade parcial sem redução de texto deve necessariamente ocorrer uma redução do conteúdo normativo do preceito. Portanto, para que a norma que prevê a desnecessidade de comprovação da intenção do agente de colocar em risco concreto e imediato qualquer bem jurídico relevante penalmente possa ser anulada, ela deve fazer parte do conteúdo normativo do art. 299 CP. E este criminaliza textualmente as ações de "omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante".

Da simples leitura desse artigo em conjunto com a Constituição não se pode concluir que contenha a norma objeto da redução qualitativa proposta. Como bem dito no Acórdão, "o delito imputado ao acusado consagra a proteção jurídica da fé pública, como bem jurídico a ser abstratamente tutelado. Inexige, em uma primeira análise, prejuízo concreto, ou demonstração da intenção do agente ao falsificar o documento. E aí está o problema" (ACÓRDÃO: 5). Isto é, como a tipificação do delito sequer cogita - explícita ou implicitamente - da necessidade ou não de prejuízo concreto ou de comprovação da intenção do agente, estes não fazem parte de seu conteúdo normativo. Não há, portanto, norma a ser suprimida para tornar o texto constitucional, mas todo o contrário: há norma a ser adicionada! Esse fato descarta o uso de uma decisão de nulidade parcial sem redução de texto.

Em suma, a redução qualitativa pressupõe que a norma, que torna o texto inconstitucional, faça parte do conteúdo normativo do preceito. Daí que sua redação por excelência seja: o preceito é inconstitucional na parte em que (...). Como ensina Canas (1994: 90), a sentença redutiva qualitativa "declara a inconstitucionalidade da norma (no seu conjunto), enquanto a sua previsão abranja uma certa situação". Ou, no dizer de Canotilho e Moreira (1991: 269), "o juízo de inconstitucionalidade incide sobre normas como realidades jurídicas e não sobre preceitos enquanto enunciados linguísticos concretos". Nesse sentido, o próprio Acórdão fornece um bom exemplo desse tipo de sentença, quando se refere a uma decisão do Tribunal Constitucional alemão de 30.10.1963, que interpretou restritivamente o art. 129 do Código Penal, que estabelecia penas de prisão aos membros de associações que promovessem determinadas atividades consideradas inconstitucionais. "O dispositivo foi considerado válido, desde que se excluísse da noção 'associações' os partidos políticos" (ACÓRDÃO: 8). Portanto, uma clara redução do conteúdo normativo do preceito, porque os partidos políticos estão contidos no conceito "associações". Em outras palavras, se declara que o preceito é inconstitucional na parte em que inclui os partidos políticos no conceito "associações". Essa redação resulta impossível no caso do art. 299 CP.

O desacerto a respeito da inconstitucionalidade parcial sem redução de texto se confirma ademais com uma sentença do Tribunal Constitucional espanhol9 9 Sentencia del Tribunal Constitucional STC 105/1988, 08.06. colacionada como paradigma desse tipo de decisão:

Para os mais céticos, vale trazer à colação um precedente do Tribunal Constitucional Espanhol, que pode auxiliar na compreensão desta complexa questão. Com efeito, o Tribunal Constitucional da Espanha, através da sentença n. 105/88, declarou a inconstitucionalidade do delito de porte de utensílios próprios para o cometimento de furto (gazuas e outros instrumentos), por violação ao art. 24.2 da Constituição (princípio da presunção da inocência). O art. 509 do Código Penal incriminava "el que tuviere en su poder ganzúas u otros instrumentos destinados especialmente para ejecutar el delito de robo y no diere descargo suficiente sobre su adquisición o conservación". O TC espanhol declarou como contrária a Constituição qualquer interpretação do referido tipo penal que viesse a castigar tão-somente a posse de instrumentos idôneos: "en cuanto se interprete que la posesión de instrumentos idóneos para ejecutar el delito de robo presume que la finalidad y el destino que les da su poseedor es la ejecución de tal delito". Ou seja, entendeu o Tribunal espanhol que, sem a prova da possibilidade de efetivo dano, não se pode punir. A presunção de que alguém vai cometer um furto, pelo fato de estar portando instrumentos próprios para tal, não é razão suficiente para o enquadramento no tipo penal. Meras condutas não podem ser punidas; tampouco se pode punir alguém com base em presunções. A sentença espanhola é uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto (grifos no original) (ACÓRDÃO: 9).

Essa sentença não é uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, mas uma decisão interpretativa de inconstitucionalidade em sentido estrito resultante da aplicação da interpretação conforme a Constituição. O primeiro e mais evidente sinal é a redação "en cuanto se interprete que la posesión...", que denota que o texto admite outra ou outras interpretações. Esse fato, porém, não é suficiente. É necessário verificar também se as possíveis interpretações emergentes do texto - depois que passaram pelo "filtro constitucional"10 10 Ver Streck, L. L, op. cit. - realmente são alternativas. Como antes visto, se for possível tornar o preceito constitucional com uma redução do seu conteúdo normativo, a sentença será redutiva (inconstitucionalidade parcial sem redução de texto); e se for possível torná-lo constitucional somente com uma adição de sentido (ou construção de sentido) proporcionada pela Constituição, será aditiva. Revorio (2001: 132) explica que no caso do art. 509 do antigo Código Penal espanhol o Tribunal delineou o tema claramente como uma eleição entre duas alternativas de interpretação do preceito:

[...] una primera interpretación entendería que la sola tenencia de instrumentos idóneos para ejecutar un delito de robo hace presumir el especial destino a tal ejecución, a menos que el acusado facilite mediante el correspondiente descargo la prueba en contrario. Según otra posible interpretación, el descargo del acusado no es una actividad necesaria, sino libre, ya que tanto la posesión de los instrumentos, como su idoneidad para el robo o el especial destino por el poseedor a la ejecución de delitos de tal tipo, corresponde siempre probarlos a la parte acusadora. El Tribunal entiende que esta segunda interpretación es conforme a Constitución, pero no así la primera.

De modo que o Tribunal Constitucional optou por declarar a inconstitucionalidade do preceito enquanto seja interpretado segundo a primeira interpretação. Não obstante, deixou expressamente estabelecido que as duas interpretações analisadas nos fundamentos não excluíam "la posibilidad de otras diferentes, que no es posible enjuiciar, porque no han sido objeto de debate" (STC 105/1988: 3). A conclusão de Revorio (2001: 132) é de que "estamos así ante uno de los más claros ejemplos de sentencia interpretativa de estimación". Efetivamente, a existência de interpretações alternativas permitiu que o Tribunal se limitasse a escolher e declarar inconstitucional a norma desconforme a Constituição. Não reduziu nem aumentou o conteúdo normativo do preceito.

A despeito de haver concluído erroneamente - segundo o ponto de vista aqui defendido -, que a sentença n. 105/88 do Tribunal Constitucional espanhol se tratava de um exemplo de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, o Acórdão explica adequadamente as características desse tipo de sentença:

[...] trata-se de aplicar, mutatis mutandis, aquilo que no direito português se denomina de decisão redutiva. Ou, melhor ainda, na acepção de Jean-Claude Béguin (Le controle de la constitutionnalité de lois em République Fédérale d´Allemagne), trata-se de "anulação parcial qualitativa" (quando a norma, no seu conjunto, não deve ser aplicada a certa situação, por tal aplicação ser inconstitucional) (grifos no original)11 11 Acórdão 9. Após essa explicação, o Acórdão trouxe um exemplo de inconstitucionalidade parcial qualitativa ditado pela antiga Comissão Constitucional portuguesa, cujos termos parecem efetivamente configurar uma sentença desse tipo. Contudo, ela não será aqui comentada, por não ter sido possível o acesso à íntegra da decisão. Eis a descrição do exemplo: "Face a uma norma que regulava as atenuações extraordinárias previstas no art. 298, prevendo certas atenuações obrigatórias, verificadas determinadas circunstâncias, entendeu-se declarar a norma parcialmente inconstitucional na parte em que consagrava as referidas atenuações extraordinárias obrigatórias (ou legislativas, como são designadas no texto do acórdão), considerando-se que seriam admitidas como meramente facultativas para os juízes" ( Diário da República, p. 40, 29.12.1978). (ACÓRDÃO: 9).

Voltando ao art. 299 do Código Penal brasileiro, constata-se que o mesmo motivo que inviabilizou a utilização da decisão de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto impossibilita igualmente a utilização de uma sentença interpretativa de inconstitucionalidade em sentido estrito (interpretação conforme). Como a tipificação do delito sequer cogita - explícita ou implicitamente - a necessidade ou não de prejuízo concreto, ou de comprovação da intenção do agente, estes não fazem parte do seu conteúdo normativo. Em suma, assim como uma norma inexistente não pode ser suprimida do conteúdo normativo de um preceito (inconstitucionalidade parcial sem redução de texto), tampouco possibilita a busca de interpretações alternativas (interpretação conforme a Constituição). De modo que não é possível supor que o art. 299 do Código Penal será inconstitucional enquanto interpretado no sentido de que não há necessidade de qualquer comprovação da intenção do agente de colocar em risco concreto e imediato qualquer bem jurídico penalmente relevante. Ou, por outra, que será constitucional enquanto interpretado no sentido de que há necessidade... A solução, já se vê, está numa adição de sentido.

A interpretação conforme stricto sensu normalmente é um passo prévio à emissão de decisões manipulativas e de inconstitucionalidade simples. O juiz deve verificar primeiro se há possibilidade de interpretar o texto do preceito segundo uma alternativa constitucional e somente depois partir para outras soluções. No presente caso, ficou patente que sem uma adição de sentido proporcionada pela Constituição, o preceito não logrará salvar-se (ou tornar-se constitucional). Como diria Miranda (2002: 514), "a inconstitucionalidade acha-se na norma na medida em que não contém tudo aquilo que deveria conter para responder aos imperativos da Constituição. E, então, o órgão de fiscalização acrescenta (e, acrescentando, modifica) esse elemento que falta" (grifos no original). Trata-se, portanto, de ditar uma sentença manipulativa (modificativa) aditiva, porque os princípios constitucionais da proporcionalidade, razoabilidade e secularização aplicáveis ao art. 299 CP exigem que o preceito tenha um sentido que seu texto em conjunto com a Constituição é incapaz de gerar por si mesmo. A sentença aditiva indica que um preceito é inconstitucional enquanto não estabelece..., ou não prevê..., ou omite..., ou não inclui..., ou exclui..., algo que deveria incluir para ser conforme a Constituição. A disposição é conservada em sua totalidade, mas passa a significar também o sentido omitido (norma) que a tornava ilegítima. Isto é, o Tribunal produz uma nova norma e a adiciona à disposição para convertê-la em constitucional, porque esse tipo de sentença tem sua causa numa omissão da lei.12 12 Por exemplo, a provável primeira sentença aditiva da Corte Constitucional italiana: " Sentenza n. 168/1963 (Manca): dichiara la illegittimità costituzionale dell'art. 11, primo comma, della legge 24 marzo 1958, n. 195, istitutiva del Consiglio superiore della Magistratura, in riferimento agli art. 104, primo comma, 105 e 110 della Costituzione, in quanto, per le materie indicate nel n. 1 dell'art. 10 della legge stessa, esclude l'iniziativa del Consiglio superiore della Magistratura". Comparando-a com a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, Canas (1994: 93) é definitivo: "enquanto ali o que se verifica é uma violação por ação pelo autor da norma, que dispõe o que não deveria, aqui a norma diz menos do que deveria dizer".

Em suma, nem anulação parcial do conteúdo normativo, nem eleição entre alternativas emergentes do conteúdo normativo. O que o preceito necessita é que se lhe adicione ou se lhe "construa" o sentido que o tornará constitucional. Tal decisão aditiva poderia ser nos seguintes termos: "o art. 299 do Código Penal é inconstitucional enquanto não estabelece a necessidade de qualquer comprovação da intenção do agente de colocar em risco concreto e imediato um bem jurídico penalmente relevante" (grifos do autor).

O perigo imediato (e concreto), como ressalta o Acórdão, "passa a ser condição de possibilidade para a aferição da incidência do tipo penal" (ACÓRDÃO: 8). É fácil constatar que a sentença que se acabou de sugerir é idêntica à suposta declaração de inconstitucionalidade parcial qualitativa ou sem redução de texto contida no parecer adotado pela Câmara: "o art. 299 do Código Penal será inconstitucional se aplicado sem qualquer comprovação da intenção do agente de colocar em risco concreto e imediato qualquer bem jurídico relevante penalmente". De fato, enquanto nesta redação está subentendido que o artigo em questão necessita de algo mais para ser constitucional, na redação aqui proposta a necessidade de adição de conteúdo está explícita. De modo que ambas modificam o conteúdo normativo originário do preceito, agregando-lhe as condicionantes exigidas pela Constituição. Em outras palavras, ambas são sentenças manipulativas aditivas.

No caso especifico do art. 299 do CP, uma possível justificativa para a utilização de uma sentença aditiva poderia ser o fato de tratar-se de uma solução a rime obbligate, isto é, a virtual impossibilidade de o legislador poder criar una lei com conteúdo diferente. Uma possibilidade admitida na Itália quando supostamente existe uma imposição constitucional que não deixa margem de escolha. A ideia subjacente é de que em tal situação a discricionariedade do legislador simplesmente não existe (CRISAFULLI, 1976: 1707). Não obstante, se a estrutura do preceito constitucional for aberta, isto é, admitir outras possibilidades de concretização legal, a escolha da solução mais adequada é necessariamente política e deve ser privativa dos representantes democraticamente eleitos pelo povo, isto é, do Poder Legislativo. Nesse caso, o tribunal deverá declarar a inconstitucionalidade do preceito, permitindo ao legislador a redação de outra lei. Essa ponderação deve ser feita, mesmo porque os limites da solução aditiva nem sempre sejam muito claros, como denota a crítica de Saitta (1996: 311-312), para quem:

[...] só com uma boa dose de ingenuidade se pode sustentar que as decisões manipulativas da Corte Costituzionale sejam fruto das rime obbligate ou até obbligatissime impostas pela métrica das normas constitucionais, sendo evidente, pelo contrário, que o TC escolhe frequentemente de forma discricionária entre uma multiplicidade de soluções abstratamente possíveis.

No mesmo sentido o alerta de Crisafulli (1967: 14), para quem a sentença aditiva traz subjacente o perigo de - sob uma forma de inconstitucionalidade, substancialmente e com múltiplas diferenciações - "vi aggiunge qualcosa". De qualquer maneira, não é demais repetir que a decisão de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto - admitida explicitamente pela Lei 9868/1999 -, também é considerada de índole manipulativa pelos italianos. E com toda a razão.

A alternativa à sentença aditiva seria a declaração de inconstitucionalidade pura e simples do art. 299 CP - com todas as consequências inerentes a uma decisão tão radical - ou então, uma declaração de omissão parcial. A única coisa inadmissível - e nesse ponto o parecer do Ministério Público, adotado pelo Acórdão como razão decisória, tem toda a razão - é a aplicação desse artigo sem passar pelo "filtro constitucional". Sob esse ponto de vista, a suposta declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto contida no Acórdão, ainda que tecnicamente não tenha sido a solução mais adequada, cumpriu seu objetivo.

2 ANÁLISE CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO 70007387608-2004 13 13 Acórdão n. 70007387608-2004, 11.02.2004, 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; Desembargadores Aramis Nassif (Relator), Amilton Bueno de Carvalho e Luís Gonzaga da Silva Moura. O Acórdão adotou como razão decisória o parecer do Procurador de Justiça Lenio Luiz Streck. Disponível em: < http://www.leniostreck.com.br>.

Sob idênticos argumentos, o mesmo órgão fracionário concluiu que o art. 10 da Lei 9.437/97 deveria ser declarado parcialmente inconstitucional sem redução de texto:

A técnica da nulidade parcial sem redução de texto é aplicada quando queremos expungir dos sentidos (uma das incidências) de uma (ou de parte da norma). Enquanto na interpretação conforme a constituição há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto há uma abdução de sentido. Trata-se de uma decisão de acolhimento parcial qualitativa (e não quantitativa, porque o texto permanece na íntegra) da norma. Diz-se, assim, que determinado dispositivo é inconstitucional se aplicado a hipótese "x". É o caso dos autos: o art. 10, da Lei n. 9.437/97, na parte em que estabelece que o simples ato de portar arma configura crime é inconstitucional se aplicada a um caso concreto em que, primeiro, a arma esteja desmuniciada, e, segundo, que o Estado não comprove que a conduta de portar a referida arma esteja colocando em risco bem jurídico efetivo, identificado, e, portanto, concreto (ACÓRDÃO: 7).

O art. 10 da Lei 9437/1997 estabelece:

Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena - detenção de um a dois anos e multa.

"Todos os argumentos expendidos na análise do Acórdão anterior servem igualmente para a presente situação que, não obstante, envolve uma combinação entre duas sentenças manipulativas: uma redutiva e outra aditiva. Em primeiro lugar, o que configura o crime previsto no preceito legal em questão é o porte de arma "sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar", nada tendo sido especificado sobre a necessidade de ela estar ou não municiada, razão porque é lícito concluir que abrange ambas as situações. Por conseguinte, o preceito em questão (o tipo penal "portar") deve ter reduzido o seu conteúdo normativo para excluir de sua aplicação o porte de arma desmuniciada. Como a lei disse mais do que deveria dizer, a solução alternativa à declaração de inconstitucionalidade simples, indubitavelmente, é uma inconstitucionalidade parcial sem redução de texto (manipulativa redutiva), que poderia ter a seguinte redação: o art. 10 da Lei 9437/1997 é inconstitucional na parte em que não exclui de sua aplicação o porte de arma desmuniciada (grifos nossos).14 14 Decisão tecnicamente idêntica à da Sentença 264/1988 da Corte Costituzionale italiana, que, ignorando o princípio da legalidade penal, declarou a inconstitucionalidade do art. 5º. do Código Penal " nella parte in cui non esclude dall'inescusabilità delle legge penale l'ignoranza inevitabile".

Por outro lado, o art. 10 da Lei 9437/97 não cogita que o possuidor da arma esteja obrigado a comprovar que a finalidade de seu uso é legal. Se isso ocorresse, esse preceito estaria em contradição com o princípio da presunção de inocência, como sucedeu no exemplo do Tribunal Constitucional espanhol antes comentado, que, por esse detalhe, pôde ser solucionado com uma interpretação conforme (escolha entre interpretações alternativas). Tampouco o preceito legal em questão prevê que o Estado esteja dispensado ou obrigado a comprovar que a conduta de portar a referida arma esteja colocando em risco bem jurídico efetivo, identificado e, portanto, concreto. Contudo, a necessidade dessa comprovação por parte do Estado está na Constituição (princípio da presunção de inocência e do devido processo legal). Por isso, o Tribunal deve adicionar conteúdo normativo ao referido preceito legal para torná-lo constitucional. Como a lei disse menos do que deveria dizer, a solução alternativa à declaração de inconstitucionalidade simples é uma sentença manipulativa aditiva, que poderia ter a seguinte redação: o art. 10 da Lei n. 9.437/97 é inconstitucional enquanto não prevê que cabe ao Estado comprovar que a conduta de portar uma arma esteja colocando em risco bem jurídico efetivo, identificado e, portanto, concreto (grifos nossos).

Em suma, o resultado final será uma sentença em parte redutiva e em parte aditiva: o art. 10 da Lei 9437/1997 é inconstitucional na parte em que não exclui de sua aplicação o porte de arma desmuniciada e enquanto não prevê que cabe ao Estado comprovar que a conduta de portar uma arma está colocando em risco bem jurídico efetivo, identificado e, portanto, concreto (grifos nossos).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Silva (2005:23) afirma que "a ideia de interpretação conforme a Constituição pode desempenhar um papel importantíssimo, que é o de possibilitar que o STF se mantenha fiel, ao menos aparentemente, ao seu dogma da legislação negativa, e, ao mesmo tempo, corrija ou estenda a obra do legislador, quando o entenda necessário". Como algo semelhante acontece no controle difuso, essa frase resume em boa medida o que aqui se pretendeu dizer com a análise dos dois acórdãos. Por um lado, seus fundamentos inovam, porque admitem explicitamente que partem do princípio de que a interpretação conforme a Constituição implica adição de sentido. Por outro, compartilham com o STF o entendimento de que na inconstitucionalidade parcial sem redução de texto se retira uma ou mais incidências da norma. À maneira do STF, que eventualmente corrige ou estende a obra do legislador,15 15 Exemplos de sentenças aditivas: (a) ADI 939, Sydney Sanches, j. 15.12.1993, DJ 18.03.1994 - nessa sentença o STF declarou a inconstitucionalidade, sem redução de textos, dos artigos 3º, 4º e 8º da Lei Complementar 77/1993. Contudo, ao menos em relação ao art. 3º houve uma adição de sentido, pois ele é inconstitucional enquanto não inclui as pessoas jurídicas de Direito Público e as demais entidades ou empresas referidas no art. 150, VI CFB entre as isentas de incidência de IPMF; (b) ADI 2979, Cezar Peluso, j. 15.04.2004, DJ 04.06.2004 - o Tribunal usou a expressão desde que se subentenda que, mas poderia ter usado enquanto não inclui a necessidade de que exista cargo vago na classe ou nível superior, para que a promoção possa ser efetivada. mas mantém o discurso do legislador negativo, o Tribunal estadual declarou a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto de preceitos legais, que, a despeito das aparências, não tiveram o seu conteúdo normativo reduzido, mas ampliado. Como se viu, o primeiro Acórdão analisado revelou conter uma decisão aditiva e o segundo, uma decisão em parte redutiva e em parte aditiva.

Ademais, ainda que os fundamentos dos dois acórdãos difiram da doutrina do legislador negativo defendida pelo STF, ao entender que a interpretação conforme a Constituição deve ser entendida como adição de sentido, o Tribunal estadual equipara sentenças interpretativas em sentido estrito e sentenças interpretativas manipulativas. O STF faz idêntica equiparação, quando afirma que a interpretação conforme vista pelo lado negativo resulta em sentença de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, que é uma sentença manipulativa redutiva. Uma posição que é apoiada, entre outros, por Barroso (2004: 48). Esse ponto leva a outro, que é muito significativo: a visão reducionista compartilhada pelo STF e pelo órgão fracionário estadual em relação à tipologia das sentenças interpretativas. Ignorar a existência de sentenças de inconstitucionalidade stricto senso e lato sensu - e que as últimas sejam manipulativas, podendo ser redutivas, aditivas e substitutivas -, além de permitir a mescla de sentenças intrinsecamente diferentes, desconsidera o fato de que o grau de intensidade da intervenção na obra do legislador das últimas é bem superior às primeiras. Um simplismo que não favorece em nada a transparência e dificulta uma discussão mais efetiva sobre os limites dessas sentenças, tendo em conta o principio democrático da separação de poderes. E isso ocorre tanto no controle difuso, como no concentrado. Por conseguinte, as conclusões da análise efetuada nos dois acórdãos - que teve por base a classificação das sentenças interpretativas antes exposta -, têm uma amplitude que transcende os limites das duas decisões.

Parte da responsabilidade pelo reducionismo imperante tem o parágrafo único do art. 28 da Lei 9868/1999, que prevê apenas a interpretação conforme a Constituição e a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, e faz caso omisso das demais sentenças manipulativas. No entanto, como foi possível verificar, isso não significa que elas não estejam sendo utilizadas pelos tribunais. O limite da redução não parece ser algo que preocupe a doutrina e o Judiciário brasileiro, haja vista a existência e a aceitação pacífica da inconstitucionalidade parcial, tanto de textos como de normas. Por outro lado, poucos se aventuram - como Lenio Streck - a defender a adição de normas e, até mesmo, sua substituição (que implica uma redução, seguida de uma adição de sentido),16 16 (a) Uma sugestão de sentença substitutiva - ainda que o autor não use esse termo - pode ser encontrado em: STRECK, L. L. A jurisdição constitucional e o duplo juízo de admissibilidade do art. 396 do CPP: uma solução hermenêutica. Disponível em: < www.leniostreck.com.br >, 2008, p. 8, 9. (b) Um raro caso de sentença substitutiva é a ADI 2652, Mauricio Corrêa, j. 08.05.2003, DJ 14.11.2003: o STF declarou procedente o pedido de inconstitucionalidade "para, sem redução de texto, dar à expressão ' ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB' (...) interpretação conforme a Constituição, de modo a abarcar os advogados do setor privado e do setor público". Ocorre que a palavra "exclusivamente" descarta até mesmo uma sentença aditiva. Para salvar esse preceito, que é inconstitucional por ferir o princípio da isonomia, a solução passa por uma sentença substitutiva. Uma redação substitutiva transparente poderia ser assim: a expressão " ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB" é inconstitucional na parte em que ressalva exclusivamente os advogados do setor privado em lugar de ressalvar os advogados do setor privado e do setor público. A alternativa - mais trabalhosa - seria declarar a inconstitucionalidade parcial (com redução de texto) da palavra "exclusivamente" e dar à frase restante interpretação conforme ( stricto sensu). como faz de forma relativamente habitual a Corte Constitucional italiana.

Essas sentenças e os seus limites devem ser discutidos sem preconceito. Não se trata de apoiar que o Poder Judiciário invada competência exclusiva do Poder Legislativo, mas de dar-se conta que o dogma do legislador negativo - que vem da época de Kelsen, que o concebeu pensando exclusivamente em eliminação de textos - já não condiz com o que se espera hodiernamente da jurisdição constitucional. Nos dias de hoje a fiscalização da constitucionalidade não pode prescindir de mecanismos que garantam a plena normatividade da Constituição, ainda que determinada interpretação não esteja totalmente de acordo com a suposta vontade originaria do legislador. Nesse caso não se cria direito, se aplica a Constituição. É o que ocorre quando se utiliza a interpretação conforme a Constituição apenas para buscar interpretações alternativas emergentes do preceito legal e também pode ocorrer com uma sentença manipulativa, quando seja imprescindível e com a máxima transparência.

NOTAS

Artigo aprovado (28/09/2009)

Recebido em 12/08/2009

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  • 1
    Como o sistema brasileiro aceita a declaração de constitucionalidade, optou-se por utilizar as expressões sentença de constitucionalidade e de inconstitucionalidade ao invés de sentença de improcedência e de procedência. Evitam-se assim possíveis confusões no controle difuso, tendo em vista que uma demanda pode ser procedente no mérito e improcedente relativamente à questão de constitucionalidade tratada incidentalmente no processo (e vice-versa).
  • 2
    Para uma classificação mais elaborada, ver: BRUST, L. Uma tipologia das sentenças constitucionais.
    Revista da AJURIS, Porto Alegre, n. 102, p. 223-250, jun. 2006. A prolífica tipologia italiana pode ser apreciada no excelente DE LA VEGA, Augusto Martín.
    La sentencia constitucional en Italia (Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003).
  • 3
    Como ambos os acórdãos adotaram como razão decisória, na íntegra, pareceres do Procurador de Justiça Lenio Luiz Streck, é justo que se faça uma pequena advertência prévia. Não se pretende por em questão a ideia da pré-compreensão (
    Vorverständnis) da legislação a partir da Constituição, tão bem explicada e difundida por esse autor em suas obras, particularmente
    Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova critica do direito (2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003). Ao contrário, comungamos a ideia de que a disseminação dessa prática entre os operadores do direito é indispensável para a constitucionalização do sistema jurídico-legal e, portanto, para a consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil. Tampouco se pretende entrar no mérito das decisões, mas tão-somente analisar criticamente a técnica empregada para chegar a elas.
  • 4
    Acórdão n. 70015006935-2006, de 28.06.2006, 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; Desembargadores Amilton Bueno de Carvalho (Relator), Aramis Nassif e Genaceia da Silva Alberton. Disponível em: <
  • 5
    Parecer do Procurador de Justiça Lenio Luiz Streck.
  • 6
    Representação de Inconstitucionalidade n. 1.417 (RTJ 126/53).
  • 7
    Uma boa seleção de artigos sobre os limites entre jurisdição constitucional e atividade legislativa pode ser encontrada em: AJA, Eliseo (ed.).
    Las tensiones entre el Tribunal Constitucional y el Legislador en la Europa actual (Barcelona: Ariel, 1998).
  • 8
    Dois exemplos de interpretação conforme ditadas pelo Tribunal Constitucional português: (a) Acórdão n. 385/1998 - declarou a inconstitucionalidade do art. 69, 2º, do Decreto-Lei n. 519-F2/79
    interpretado como sendo uma determinação para que das decisões dos conservadores e notários se recorra ao tribunal de comarca; (b) Acórdão n. 183/2008 - se pronunciou pela inconstitucionalidade de artigos do Código Penal
    interpretados no sentido de que a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.
  • 9
    Sentencia del Tribunal Constitucional STC 105/1988, 08.06.
  • 10
    Ver Streck, L. L, op. cit.
  • 11
    Acórdão 9. Após essa explicação, o Acórdão trouxe um exemplo de inconstitucionalidade parcial qualitativa ditado pela antiga Comissão Constitucional portuguesa, cujos termos parecem efetivamente configurar uma sentença desse tipo. Contudo, ela não será aqui comentada, por não ter sido possível o acesso à íntegra da decisão. Eis a descrição do exemplo: "Face a uma norma que regulava as atenuações extraordinárias previstas no art. 298, prevendo certas atenuações obrigatórias, verificadas determinadas circunstâncias,
    entendeu-se declarar a norma parcialmente inconstitucional na parte em que consagrava as referidas atenuações extraordinárias obrigatórias (ou legislativas, como são designadas no texto do acórdão), considerando-se que seriam admitidas como meramente facultativas para os juízes" (
    Diário da República, p. 40, 29.12.1978).
  • 12
    Por exemplo, a provável primeira sentença aditiva da Corte Constitucional italiana: "
    Sentenza n. 168/1963 (Manca): dichiara la illegittimità costituzionale dell'art. 11, primo comma, della legge 24 marzo 1958, n. 195, istitutiva del Consiglio superiore della Magistratura, in riferimento agli art. 104, primo comma, 105 e 110 della Costituzione, in quanto,
    per le materie indicate nel n. 1 dell'art. 10 della legge stessa, esclude
    l'iniziativa del Consiglio superiore della Magistratura".
  • 13
    Acórdão n. 70007387608-2004, 11.02.2004, 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; Desembargadores Aramis Nassif (Relator), Amilton Bueno de Carvalho e Luís Gonzaga da Silva Moura. O Acórdão adotou como razão decisória o parecer do Procurador de Justiça Lenio Luiz Streck. Disponível em: <
  • 14
    Decisão tecnicamente idêntica à da Sentença 264/1988 da Corte Costituzionale italiana, que, ignorando o princípio da legalidade penal, declarou a inconstitucionalidade do art. 5º. do Código Penal "
    nella parte in cui non esclude dall'inescusabilità delle legge penale l'ignoranza inevitabile".
  • 15
    Exemplos de sentenças aditivas: (a) ADI 939, Sydney Sanches, j. 15.12.1993, DJ 18.03.1994 - nessa sentença o STF declarou a inconstitucionalidade, sem redução de textos, dos artigos 3º, 4º e 8º da Lei Complementar 77/1993. Contudo, ao menos em relação ao art. 3º houve uma adição de sentido, pois ele é inconstitucional
    enquanto não inclui as pessoas jurídicas de Direito Público e as demais entidades ou empresas referidas no art. 150, VI CFB entre as isentas de incidência de IPMF; (b) ADI 2979, Cezar Peluso, j. 15.04.2004, DJ 04.06.2004 - o Tribunal usou a expressão
    desde que se subentenda que, mas poderia ter usado
    enquanto não inclui a necessidade de que exista cargo vago na classe ou nível superior, para que a promoção possa ser efetivada.
  • 16
    (a) Uma sugestão de sentença substitutiva - ainda que o autor não use esse termo - pode ser encontrado em: STRECK, L. L. A jurisdição constitucional e o duplo juízo de admissibilidade do art. 396 do CPP: uma solução hermenêutica. Disponível em: <
    www.leniostreck.com.br >, 2008, p. 8, 9. (b) Um raro caso de sentença substitutiva é a ADI 2652, Mauricio Corrêa, j. 08.05.2003, DJ 14.11.2003: o STF declarou procedente o pedido de inconstitucionalidade "para, sem redução de texto, dar à expressão '
    ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB' (...) interpretação conforme a Constituição, de modo a abarcar os advogados do setor privado e do setor público". Ocorre que a palavra "exclusivamente" descarta até mesmo uma sentença aditiva. Para salvar esse preceito, que é inconstitucional por ferir o princípio da isonomia, a solução passa por uma sentença substitutiva. Uma redação substitutiva transparente poderia ser assim: a expressão "
    ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB" é inconstitucional
    na parte em que ressalva exclusivamente os advogados do setor privado
    em lugar de ressalvar os advogados do setor privado e do setor público. A alternativa - mais trabalhosa - seria declarar a inconstitucionalidade parcial (com redução de texto) da palavra "exclusivamente" e dar à frase restante interpretação conforme (
    stricto sensu).
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      28 Set 2009
    • Recebido
      12 Ago 2009
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